quarta-feira, 31 de março de 2010

A toupeira, o fraco e o administrador

O século XVIII chamou a si mesmo de “o século da razão”. O século XIX ficou conhecido como o “século da história”. Todavia, muito dessa história nada era senão uma versão dos acontecimentos segundo o olhar da razão. Apesar de ser um século de historiadores, o XIX foi antes de tudo um século da filosofia da história.

Hegel fundiu a história da razão com a razão da história. Depois dele, uma boa parte dos filósofos não conseguiu filosofar sem estabelecer uma filosofia da história. Rechearam essa perspectiva à medida que tomaram conhecimento das pesquisas sobre a evolução, levadas adiante por outro gigante dessa época: Charles Darwin. Este, por sua vez, derrubou o muro entre os bípedes-sem-penas e os seres brutos, unindo todos os habitantes da Terra em uma só família para além do que o Deus judaico-cristão havia feito.

Os pensadores que vieram na esteira de Hegel e Darwin, então, não conseguiram deixar de elaborar grandes narrativas sobre o desenvolvimento da história do mundo e dos homens, inserindo suas próprias filosofias nesses romances. Marx, Comte e Nietzsche fizeram isso de modo magistral, deixando o século seguinte, o século XX, completamente dependente dessas suas maneiras de explicar suas épocas como tendo se iniciado justamente com a origem de todos os tempos.

Marx e Nietzsche usaram de suas filosofias da história como instrumentos da filosofia. Nietzsche estava bem menos preocupado que Marx em dizer como a história funcionava. Sua filosofia da história não lhe era útil como explicação da história e, sim, como uma narrativa de apoio para seu projeto de fustigação da metafísica. Esse seu projeto era o de combate ao platonismo e, portanto, ao modo de pensar que ele acreditava preso às valorações, ao que deixava o homem diminuir-se diante de si mesmo e se tornar infeliz. Marx, por sua vez, interpretou a história para poder, a partir disso, esboçar uma teoria das revoluções e, então, explicar as possibilidades de êxito político de forças sociais de seu tempo. Nenhum deles chegou a considerar a sua visão da história como uma férrea e determinante maneira de traçar o caminho antecipado da história. Isso, ambos deixaram nas mãos de Comte. Este, por sua vez, estabeleceu uma filosofia da história que tinha como objetivo claro substituir a própria história. Essa forma de ver a história caracterizou o século XIX e, no século XX, influenciou muitos intelectuais e políticos, inclusive os herdeiros de Marx e Nietzsche.

Marx explicitou sua filosofia da história no célebre Introdução à crítica da Economia Política, de 1859. Neste, ele se lembra de como que ele e Engels começaram a estudar os problemas econômicos e de maneira chegaram à teoria social que, como entendiam então, parecia os tornar mais aptos para a compreensão do desenvolvimento social. Neste livro, Marx divide a vida social em duas instâncias, que ele chama de “estrutura” e “superestrutura”. Na primeira ele coloca as “forças produtivas”, que são a terra, as máquinas, as indústrias, a ciência e a tecnologia. A segunda ele reserva para as “relações de produção”, que são as leis, as instituições políticas, a religião e as doutrinas várias sobre diversos assuntos, inclusive a filosofia. A dinâmica da história diz que as “forças produtivas” se desenvolvem, sob o comando de uma classe ou grupo social, por terem a seu favor as “relações de produção”. Todavia, as “forças produtivas”, por suas próprias características, nunca cessam de avançar e, em determinado momento, não contam mais com as “relações de produção”. Estas, então, começam a servir de freio social, jurídico, político e ideológico. Eis aí que essa contradição se explicita em seu cume por meio de uma revolução política. Grupos sociais que não eram os dominantes tomam a sociedade e o estado e buscam um novo ordenamento jurídico e político para libertar o desenvolvimento social.

Com essa narrativa, Marx elaborou uma filosofia da história bastante dependente do modelo gerado pelas convulsões modernas, as chamadas “revoluções burguesas”. Esse movimento ele descreveu por meio da metáfora da toupeira. A revolução é a toupeira que cava às escondidas e bota seu focinho para fora no lugar que se menos espera. Ou seja, as relações de produção que, enfim, começam por criar entraves às forças produtivas, vão dar margem, mais cedo ou mais tarde, para um rearranjo político, mas não é possível de se prever muito bem em que lugar isso levará a uma revolução política.

Nietzsche explicitou sua filosofia da história em vários de seus livros e, de um modo mais organizado, no Genealogia da moral, de 1887. Diferente de Marx, ele não lida com grupos sociais recortados socialmente, mas com tipos. Seus tipos são entidades com psicologias bem definidas, postos sob duas grandes rubricas: “fracos” (ou “doentes” ou “escravos”) e “fortes” (“sadios” ou “senhores). Os “fracos” não afirmam a vida e são responsáveis pela valoração moral enquanto que os “fortes” são afirmadores da vida e estão além (ou aquém) de qualquer valoração, ao menos quanto a valorações intencionais. O fio condutor da dinâmica histórica é o desenvolvimento do niilismo, ou seja, o contínuo descrédito de todos os valores. Os “fracos” são os promotores da valoração moral que faz os “fortes” verem a si mesmos não mais como o que são, mas segundo a ótica do valor moral “bom” e “mau”. Uma vez nessa atmosfera, não tendem mais a achar que o contrário de “bom” é “ruim”, em um sentido técnico, mas é “mau”, em um sentido moral. Cria-se aí a má consciência. Os fortes se sentem culpados de serem o que são – os maus – e, uma vez culpados, já estão na condição de “fracos”. Desse modo, a história é a vitória dos “fracos”, dos “escravos”, dos “doentes”. Essa vitória torna tudo decadente, ninguém mais ousa entrar na vida e vive-la segundo tudo que se há nela (o amor fati), e por isso o niilismo é um destino posto.

Apesar dessa narrativa estar completamente descolada da teoria social e, portanto, não rivalizar com as elaborações de Marx, é certo que não foram poucos os que absorveram aspectos dela para construírem uma teoria social bem particular. Assim, forças psicossociais decadentes, ressentidas, consubstanciando-se na força dos “fracos”, se poriam sempre à espreita dos “fortes”, pronto para fomentar entre eles a má consciência. Os “fracos” venceriam, finalmente, impondo um destino aos “fortes” e à história em geral. A história chegaria ao fim por uma vitória da decadência.

Augusto Comte não fez tipologia e nem teoria social da história, não ao menos em um sentido amplo. Sua filosofia da história foi claramente antropológica, com conseqüências definidas para o campo epistemológico em articulação a uma hierarquia política. Sua visão ficou conhecida como “lei dos três estados”. Segundo Comte, a humanidade passa por três estados: a fase teológica, a metafísica e a científica. O homem inicia sua jornada explicando o mundo por meio de forças míticas – deuses e demiurgos. Deixa de lado tais forças e inventa a filosofia, buscando um porto seguro em um mundo além do físico, apontado pela razão. Por fim, aceita que deve permitir vir à tona a positividade dos fatos, e então passa a explicar o mundo pela ciência.

A cada estado do desenvolvimento do espírito humano, Comte aponta para um tipo de mentalidade que teria preferências políticas definidas: à fase teológica corresponde um gosto pela monarquia militarista; à fase metafísica corresponde uma mentalidade que vê o melhor governo como o composto por juristas segundo as regras de um Estado constitucional; à fase científica ou positiva corresponde uma política feita por sábios e cientistas, deixando o poder material e econômico nas mãos dos industriais.

Comte teve como lema o “saber para prover”. A filosofia da história, como Comte a formulou, estava longe de ser uma forma heurística para novos estudos, como em Marx, ou um aríete para combates internos à filosofia, como em Nietzsche. Seu objetivo era o de efetivamente dar um panorama sobre qual fase cada grupo humano estaria vivendo, no sentido de destacar os mais e os menos evoluídos. A idéia básica era, a partir daí, poder então prever os passos posteriores do grupo observado e, assim, ter uma noção segura do que poderia faltar a tal grupo. A garantia do futuro sem crise era o objetivo máximo de Comte.

O século XIX não foi o século de Marx ou Nietzsche, e sim de Comte. Sua filosofia da história não apontava para nenhuma toupeira que pudesse, ao colocar o focinho para fora, anunciar a convulsão social. Também nada dizia daqueles que, valorando moralmente, deslocariam a cultura ocidental para uma vida tediosa. A história, nas linhas gerais de sua concepção, mostrava um único bem máximo, o conhecimento científico, e um único herói verdadeiro, o planejador. Nada justificaria colocar freios ao trabalho científico, pois ele sim traria a segurança da possibilidade de dar a cada nação a provisão necessária segundo seu estágio de desenvolvimento. Essa idéia trouxe, sem dúvida, aquilo que o século XX mais precisou: a segurança de que é possível administrar o presente com vistas ao futuro porque é possível fazer planejamentos.

A palavra planejamento teve vida longa no século seguinte e, depois da II Guerra Mundial, ganhou todos os governantes. Passou-se, inclusive, a servir de parâmetro para a escolha dos governantes. Político bom seria aquele que mostrasse saber planejar o desenvolvimento. Isso se casou com a emergência das políticas econômicas de caráter social-democrata. Chegou à aberração nos regimes fascistas e comunistas, cuja sede louca foi a de criar administrações em que o inusitado e o contingente seriam vistos como um crime. Comte deu ao século XX o seu herói que, é claro, tinha um rosto típico de século XIX: o rosto do administrador. Caso Comte quisesse parodiar Marx, teria dito, “engenheiros do mundo, uni-vos – uni-vos em torno do objetivo de se tornarem administradores”.


By Paulo Ghiraldelli - http://ghiraldelli.pro.br/2010/03/toupeira-fraco-administrador/

sábado, 27 de março de 2010

Desenvolvimento Humano - Atenção Líderes

Eu adoro o gênero humano y amo igualmente a três classes de homens:
aquele que blasfema da vida, aquele que a bendiz e aquele que medita sobre ela.

Amo o primeiro por causa de sua infelicidade, o segundo por sua generosidade e o terceiro por sua sensibilidade e por sua paz.

                                                                                             Gibran Khalil Gibran
 
Inserido por Roncalli Maranhão